terça-feira, 4 de novembro de 2008

ACASO

De sua formosura deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de, humana oficina.

(João Cabral de Melo Neto)

Era sexta-feira e a quarta vez que eu passava por ali aquela semana e ele estava lá, não me lembro de querer tê-lo visto antes, porque preferia que não estivesse ali ou porque não me era importante a visão daquele ser. Não fiz questão de responder aos seus cordiais “bom-dia”. Quando muito inclinava a cabeça, num cumprimento mudo, e que o pobre diabo se contentasse com aquela resposta. Mas também nunca me pediu nada, apenas me desejava o “bom-dia”, assim, seco.

Não podia entender como pode uma pessoa chegar naquela situação. Não me lembro de ter ganhado um centavo que não fosse fruto de muito trabalho, e se hoje administro uma das maiores empresas de telecomunicação do País, o fiz com muito esforço. Não é fácil sair de onde eu saí e chegar até aqui, sempre acreditei que, o que um homem pode fazer outro também pode, então porque aquele homem se sujeita a tal situação?

Lembro-me que quando criança passava horas a fio tentando encontrar respostas para perguntas como a ‘finitude’ do universo, a coisa que compõe a chuva, o destino dos sonhos quando morremos, dentre outras perguntas cujas respostas não estão no dicionário. Agora me vejo ante outra dessas perguntas: “Como pode um homem chegar àquela situação?”

Mas, o que realmente tomou conta do meu pensamento e quase todo meu tempo, foi o fato de que naquela manhã quando chegava ao escritório, contrário ao já esperado “bom-dia”, ele me disse apenas:

- Estou com fome!

Não respondi nada, nem quis ouvir aquela frase pronunciada quase que como um gemido, entrei rápido no edifício, corri para alcançar o elevador que já fechava a porta, não me lembro de ter visto outras pessoas ali, não havia espaço em minha mente, se não para aquela frase: “estou com fome!”.

O dia passou e não pensei noutra coisa que não fosse fome, que fome tinha aquele homem? A fome consome quem tem fome. E todos temos fome, de poesia, de amor, de liberdade, de trabalho, fome que faz doer a alma, doer o estômago, a fome dos Retirantes de Portinari, da vontade de comer Caetano, de Fabiano e da cadela Baleia. Qual seria a fome daquele homem?

Notei que nunca tinha pensado naquele homem, nem na sua fome – se quer pensei se era homem, ou que outra coisa poderia ser – porém, aquela manhã quando vi os seus olhos, culpei-me por não ter percebido antes que era um homem. Mas como poderia, será que eu estava errado em acreditar que todos temos as mesmas capacidades? Que é o nosso esforço e não a nossa ‘sorte’ que decide o nosso destino?

Cresceu em mim uma vontade de conhecer as razões daquele homem. Ao final do expediente, depois de um dia incomum, entrei no elevador ansioso para encontrá-lo, e quem sabe encontrar algumas respostas. Quando cheguei na calçada olhei para o beco onde o tinha visto pela manhã e lá estava ele contemplando a rua, como a criança que vê pela primeira vez o mar. Fiquei parado por um tempo observando-o, percebi que não era um simples mendigo, talvez fôra antes trabalhador como foi meu pai, pois tinha as mesmas mãos calejadas de cabo de enxada. Calçava chinelos hawaianas de correias remendadas, calças arregaçadas à altura dos joelhos e usava uma camisa sem botões e amarelada, que talvez antes fôra branca. Percebi também que tinha comido, havia um saco de papel – desses de padaria – ao seu lado. Notei que ele também me observava, então me aproximei e como se quisesse fazer dele um amigo cumprimentei-o e lhe perguntei o nome, com um sorriso franco, ingênuo e sem dentes ele respondeu ao meu cumprimento e disse:

- “meu nome é Severino, como não tenho outro de pia...”



J. César